Um transexual de aparência masculina deu à luz
uma menina na Argentina. A estranheza provocada pela notícia é
compreensível. De barba e camisa rosa na foto desta página, Alexis
Taborda exibe a gravidez. Quem acaricia a barriga, como nas imagens
tradicionais de álbum de família, é a mulher dele, Karen Bruselario. A
gestação não é resultado de intervenção artificial. É natureza pura.
Alexis e Karen são considerados transexuais, mas conservaram os
aparelhos reprodutores com os quais nasceram. Isso permitiu que Alexis
gerasse a filha em seu útero. A menina Génesis Evangelina nasceu com
mais de quatro quilos, segundo reportagem da agência EFE. Alexis é mãe e pai. Karen é pai e mãe.
No Twitter, um brasileiro expressou surpresa. “Realmente, vou viver bastante e não vou ver tudo”. Felizmente, eu diria. Novos arranjos familiares surgiram nas últimas décadas, mas ainda há muito para ver, transformar e respeitar. A estranheza é compreensível. O desrespeito é inaceitável.
Além de curiosidade, o nascimento de Génesis suscita reflexão. É uma história que embaralha e aproxima os papéis de pai e mãe. Se a fronteira entre eles tornou-se tênue mesmo entre casais biologicamente e socialmente heterossexuais, nessa família argentina a divisão será inexistente – e, provavelmente, irrelevante.
Afinal, quem é o pai e quem é a mãe?
Poderíamos afirmar que o pai é Karen (dele saiu o espermatozóide) e a mãe é Alexis (dela veio o óvulo). Suspeito que essa também seria uma definição capenga. Somos muito mais complexos que nossas células germinativas e nossa genitália.
De todas as variantes da sexualidade humana, talvez nenhuma seja tão incompreendida quanto a transexualidade. Faz pouco tempo que a ciência médica começou a se interessar pelo tema.
Transexuais nascem com cromossomos, genitais e hormônios de um sexo, mas têm a convicção de pertencer ao gênero oposto. Segundo a ciência, durante a gestação ocorre uma divergência entre a programação sexual do cérebro e os genitais.
Há alguns anos, o pesquisador Eric Vilain, da Universidade da Califórnia, reafirmou a tese de que o sexo do embrião é determinado pelo cérebro – muito antes do desenvolvimento de testículos ou ovários.
Num estudo com camundongos, verificou-se que alguns genes tramam a formação do cérebro feminino ou masculino antes que o corpo comece a ser banhado por hormônios de um sexo ou do outro.
Um erro nessa troca de mensagens provoca o resultado perturbador relatado por muitos transexuais: cabeça de mulher aprisionada em corpo de homem, ou vice-versa.
Em 1995, o Instituto do Cérebro da Holanda, fez uma importante descoberta. Depois de dissecar o encéfalo de seis transexuais nascidas com genitália masculina, os pesquisadores descobriram uma peculiaridade na região do cérebro que regula o comportamento de gênero. A área era menor que a dos homens e idêntica à das mulheres.
O estado de incongruência entre cérebro e corpo costuma ser fonte de sofrimento crônico. Daí a necessidade de tratamentos para adequar um ao outro. Com a administração de hormônios, é possível desenvolver características do novo sexo e mascarar as do sexo original. Por exemplo, barba e pelos nos transexuais mulher-para-homem e mamas desenvolvidas nas transexuais homem-para-mulher.
A cirurgia para transformação do sexo masculino em feminino e vice-versa é um importante recurso de readequação, mas nem sempre os transexuais têm acesso a ela ou estão dispostos a se submeter ao procedimento.
Em novembro, Alexis e Karen se casaram no civil na cidade de Victoria, na província de Entre Ríos. O padre católico Raúl Benedetti abençoou o ventre de Alexis. Todo o dia 15 de cada mês, há uma cerimônia de benção às grávidas. “Uma vez eu os convidei e eles vieram”, disse o padre Benedetti à agência Efe.
Na ocasião, o padre explicou que não poderia casar a dupla pela Igreja. "Há uma contradição entre o documento e a pessoa. Se eles se quisessem casar com o nome de batismo e aceitar que o papai é o homem e a mamãe é a mulher, não haveria problema."
Benedetti afirmou não ver problema na gravidez. Decidiu benzer o casal porque "é uma coisa normal e comum como tantos outros" casos.
Sou otimista. Acredito que demonstrações de respeito como essa podem inspirar as pessoas a repensar preconceitos de toda ordem – ainda tão presentes na sociedade brasileira.
Se um bebê pode nascer do útero de alguém que tem aparência e documentos masculinos e se até um padre abençoa essa gestação, nada mais atrasado e deplorável que odiar o negro, desprezar o índio e rotular como dondocas as mulheres brancas, de cabelo liso.
Está cada vez mais difícil classificar pessoas pela aparência. Ainda bem.
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