Piadas do Didi sempre foram ofensivas, apontam especialistas

"Naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam". A declaração, dada pelo humorista Renato Aragão à revista "Playboy" de janeiro, diz respeito à época de "Os Trapalhões", programa veiculado entre 1966 e 1995. Para ele, antigamente, as pessoas sabiam que suas brincadeiras não eram feitas para atingir ninguém, mas, hoje, esse tipo de humor é encarado como preconceituoso. Será mesmo que a opinião pública mudou nos últimos 50 anos?
"Todo mundo sempre se ofendeu e reclamou. Os movimentos sociais existem há décadas, o que não havia era visibilidade", afirma a professora do núcleo de sociologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Carla Cristina Garcia, que atua, principalmente, com questões de gênero e é mestre e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP.
Segundo o antropólogo Luiz Mott, mestre pela Universidade Paris-Sorbonne, professor aposentado da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e fundador do GGB (Grupo Gay da Bahia), a sociedade era mesmo mais politicamente incorreta. "Nos últimos anos, a afirmação de identidade das minorias se tornou mais combativa, através, sobretudo, das redes sociais e da disseminação da informação. Hoje, qualquer fala preconceituosa é imediatamente divulgada e causa protesto e indignação", afirma.
Embora a visibilidade da indignação hoje seja maior, os movimentos de minorias e o incômodo com este tipo de humor já existem há muito tempo. Mott lembra de um episódio ocorrido em 2004, quando o GGB divulgou um protesto dizendo ser inadmissível um embaixador da Unicef propagar tantos preconceitos. Como resposta, Aragão afirmou, na época, que nunca teve a intenção de humilhar ninguém e prometeu limpar as piadas homofóbicas de seu programa de TV. 
Em dezembro de 2008, ao receber um prêmio, Jodie Foster agradeceu Cydney Bernard, sua companheira por mais de 15 anos, pela ajuda no cotidiano. Quatro meses depois a relação terminou. Na cerimônia do Globo de Ouro em janeiro de 2013, Jodie Foster emocionou os colegas de trabalho ao comentar sua orientação sexual. "Já saí do armário há milhares de anos. Naqueles dias muito pitorescos, quando uma garota frágil escolhia se abrir com amigos confiáveis, e com a família, e depois, gradualmente, com todo mundo que a conhecia".
Para o professor doutor Dagoberto José Fonseca, chefe do departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Unesp (Universidade Estadual Paulista), as pessoas sempre reconheceram e lutaram por seus direitos, mas em condições mais difíceis do que as que encontramos hoje.
"Antes, a maioria da população era de analfabetos, não se tinha tanta ligação com a escrita, com a mídia. Além disso, com a Constituição de 1988, passamos a ter uma lei que trata de racismo como crime inafiançável, o que nos permite lutar com instrumentos legais", afirma Fonseca, que já foi coordenador do CLADIN (Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra) da Unesp e do Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão.

Brincadeira inocente?

Segundo Carla Cristina Garcia, a declaração de Aragão tem um ponto positivo: levar ao questionamento de quais efeitos este tipo de humor pode causar à sociedade. "Não devemos ser contra o humor, mas precisamos rever a ideia do que é engraçado. Qual a graça em humilhar o outro? Por que rir quando humilham alguém diferente de mim?", questiona.
Na entrevista à "Playboy", Renato Aragão afirmou, também, que as piadas que fazia com seu colega Mussum eram apenas brincadeiras, como se fossem duas crianças, e que a intenção não era a de ofender ninguém.
No Facebook, uma jovem negra moradora de Muriaé (a 320 km de Belo Horizonte) foi vítima de ofensas racistas ao postar a foto abraçada ao namorado. Em um dos comentários, um internauta escreve: ''Onde comprou essa escrava?'', para em seguida pedir: ''Me vende ela''. Ela denunciou o caso à polícia, que deve indiciar os autores por crime de injúria racial, que pena de até três anos de prisão e multa. ''Não pode ficar impune. Eu quero que seja descoberto quem foi e que paguem pelo que fizeram comigo'', disse.
Autor de "Você Conhece Aquela? - A Piada, o Riso e o Racismo à Brasileira" (Editora Selo Negro), livro que explica como as piadas sobre negros contribuem para propagar o racismo, Dagoberto José Fonseca acredita que este tipo de humor não tem nada de inocente, pois difunde diversas formas de preconceito.
"A piada não é ingênua. Ela tem como objetivo a ridicularizarão do outro e provoca um processo de maior discriminação na sociedade", afirma Fonseca. "É um mecanismo violento e sofisticado que parte de pessoas cultas, que têm consciência do que dizem, e que visa uma correção: é o correto fazendo uma observação sobre o 'anormal'. É uma tentativa de corrigir aquilo que é considerado antinatural ou que está fora de seu lugar: o gay, o negro, o gordo...".
Como consequência, segundo Fonseca, este tipo de humor propaga o preconceito. Além disso, ele generaliza e estereotipa povos, raças e classes e impede que as pessoas possam ser livres como são. "O gay quando está no armário não é motivo de piada. Mas as pessoas fazem piada quando ele se assume, porque buscam fazer com que ele volte à invisibilidade. Este é o mesmo objetivo das piadas racistas, sexistas, classistas e religiosas", diz.
Para Fonseca, se queremos fazer parte de uma sociedade que luta por igualdade e na qual as pessoas possam se expressar livremente, precisamos repensar este tipo de humor. "Devemos olhar para esta questão com responsabilidade. O objetivo não é acabar com o humor, é não incentivar o humor que humilha, que é uma violência contra o outro", afirma.
Carla concorda que devemos combater piadas preconceituosas. "Nunca é só uma brincadeira se o outro for humilhado. Quanto menos piadas racistas, homofóbicas ou machistas contarmos, maior a chance de termos uma próxima geração melhor e uma sociedade com menos discriminação".
Uol.com.br jt 

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