Juiz vai a julgamento no Rio de Janeiro por pendurar quadro que denuncia genocídio contra os pobres
3/10/2014 02:27:00 PM
Nesta segunda-feira, às 13 horas, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) realiza um julgamento inusitado. Os 25 membros do Órgão Especial do TJRJ avaliam representação judicial contra o juiz João Batista Damasceno. “Crime”: ter pendurado em seu gabinete no dia 25 de agosto de 2013 o quadro Por uma cultura de paz, de Carlos Latuff. “Trata-se de uma representação por suposto descumprimento de dever
funcional”, explica o juiz João Batista Damasceno. “O corregedor diz que
a obra de arte tem uma crítica à polícia e que pendurar tal quadro num
gabinete é crítica a outra instituição e que tal comportamento é
indevido a um juiz.” O corregedor geral de Justiça é o desembargador Valmir de Oliveira Silva. O corregedor age de ofício, ou seja, por imperativo legal em função do seu cargo. No caso, a origem da representação foi um ofício do deputado estadual
Flávio Bolsonaro, do PP. Houve, ainda, reação da “bancada da bala” e de
algumas associações de policiais. “A presidenta do tribunal é filha de policial e isso também pesou na
decisão”, acrescenta o juiz Damasceno. “Há certa pessoalidade na
questão, além do componente ideológico.” Cronologia da punição: 2 de setembro – A presidenta do TJRJ, Leila Mariano,
leu em sessão do tribunal o ofício recebido do deputado estadual Flávio
Bolsonaro. Ela fez constar da ata que o tribunal mandara tirar o
quadro. 3 de setembro – O juiz Damasceno recebeu comunicação
para retirar o quadro. Mas como soube antes que o tribunal
determinaria a retirada, ele antecipou. Ao tomar conhecimento do caso, o
desembargador Siro Darlan de Oliveira, da sétima Câmara do TJ-RJ,
decidiu dar “asilo artístico” ao quadro. “Ofereci ‘asilo artístico’ ao quadro perseguido em solidariedade a um
magistrado perseguido por ter a coragem de defender seu ponto de vista
em defesa da moralidade e da causa pública”, justifica o desembargador.
“Além disso, é um direito constitucional, o da livre manifestação do
pensamento, que não lhe pode ser negado.” 9 de setembro – O tribunal mandou retirar o quadro que estava na parede do gabinete de Siro Darlan. 12 de setembro – O desembargador Siro Darlan foi
notificado pelo corregedor geral da Justiça de que o Órgão Especial do
TJRJ abrira uma sindicância para apurar a sua conduta, considerada
“afrontosa à decisão colegiada”. “Já houve um arremedo de representação, que, como não tive mais
notícia, estou entendendo como uma desistência”, diz Siro Darlan. O quadro de Latuff, juntamente com outras obras de arte doadas por
outros artistas, foi levado a leilão. Com dinheiro arrecado, foi
adquirida uma casa para a família do pedreiro Amarildo, desaparecido
após sequestro, tortura e morte nas mãos da polícia. O quadro foi arrematado pelo desembargadora Kenarik Boujikian,
presidenta da Associação Juízes para Democracia (AJD), que o pendurou em
seu gabinete no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). João Batista Damasceno,Siro Darlan e Kenarik Boujikian
ousaram pendurar o quadro no gabinete; os três são da Associação Juízes
para a Democracia (AJD) “O julgamento do juiz Damasceno é importante e paradigmático, porque a
ação em si é um desrespeito à independência dos magistrados de se
colocarem e expressarem opiniões como qualquer cidadão”, salienta Siro
Darlan. “Esse é um direito constitucionalmente assegurado a todos os
cidadãos. Não é um direito personalíssimo, mas um direito fundamental da
sociedade.” “Todos que foram cobrados dessa forma ao longo da história da
civilização tiveram como algozes as forças reacionárias e
conservadoras”, prossegue Darlan. “Esse julgamento também descortina uma
prática nada republicana que vige nos tribunais de excluir os que
incomodam e contestam essas práticas excludentes. O tribunal serve a uma
minoria que o comanda de acordo com suas conveniências e interesses. Já
vi magistrados sendo perseguidos por ousarem ler fora dessa cartilha
conservadora e conivente.” Segue a íntegra da nossa entrevista com o juiz João Batista Damasceno. O que o levou a colocar o quadro no seu gabinete? João Batista Damasceno — O quadro retrata a
violência do Estado contra os excluídos. Os autos de resistência são
formas de mascarar os assassinatos cometidos pelo aparelho repressivo do
Estado nas periferias, vitimando principalmente jovens pobres e negros. A colocação do quadro é uma forma de denunciar o genocídio que se pratica contra os pobres. Ao lado dos autos de resistência, temos os desaparecimentos, como o
de Amarildo. Em 2012 foram 5.900 no Estado do Rio de Janeiro. Nem todos
os desaparecimentos são obras de grupos paramilitares ou grupos de
extermínio que atuam marginalmente ao Estado. Há casos de doentes
mentais ou pessoas em crises conjugais que desaparecem. Mas a maioria
dos casos é de pessoas mortas e desaparecidas. O desaparecimento de uma pessoa é uma perversidade com ela e com sua
família, pois lhe retira a possibilidade do ritual do sepultamento,
indispensável ao desenlace dos vínculos havidos ao longo da vida. Como ficou sabendo que estava sendo alvo de processo por causa do quadro? João Batista Damasceno — Fui intimado pelo
corregedor a prestar informações sobre a colocação do quadro. Em
seguida, recebi cópia da representação que me intimava para apresentação
de defesa prévia. A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj)
orientou-me a responder por meio do advogado por ela constituído. O
advogado foi intimado para a sessão do Órgão Especial do tribunal
marcada para esta segunda-feira, dia 10 de março. O que será feito durante essa sessão? João Batista Damasceno — A representação feita pelo
corregedor será apreciada pelos 25 membros do Órgão Especial do TJRJ.
Ela pode ser recebida ou rejeitada. Se recebida, começa o processo
disciplinar. Não fui intimado para a sessão, mas meu advogado foi. Que tipo de ação foi aberta contra o senhor? João Batista Damasceno — Trata-se de uma
representação por suposto descumprimento de dever funcional. O
corregedor diz que a obra de arte tem uma crítica à polícia e que
pendurar tal quadro num gabinete é crítica a outra instituição e que tal
comportamento é indevido a um juiz. Ele fala na representação em crime de “vilipêndio a objeto de culto”,
tipificado no artigo 208 do Código Penal. Mas não há ação penal. Isso é
apenas retórica. Este foi o fundamento com o qual mandou apreender o
quadro no gabinete do desembargador Siro Darlan. O tribunal não pode agir de ofício em caso de crime. Ao Ministério
Público é que caberia tal busca e apreensão, por meio de ação própria,
se estivesse diante de efetivo crime. De qualquer modo, o tratamento da questão demonstra como alguns
tribunais se colocam ao lado das truculências do Estado e usa retórica
para admoestar quem critica o Estado. Num Estado Policial, o poder não é apenas da polícia. Num Estado Policial, todas as agências atuam com a lógica da polícia. No caso em questão, está evidenciada anomalia no procedimento do
tribunal. A representação é feita tão somente contra um juiz de primeiro
grau, ainda que o quadro tenha permanecido por mais tempo no gabinete
de um desembargador. Mas, o desembargador – que se fosse o caso – deveria ser igualmente representado, não é destinatário da ação do corregedor. Foi uma decisão do próprio tribunal ou a pedido de terceiros? João Batista Damasceno — O tribunal age de ofício.
No caso, é uma representação do corregedor. Mas ele o fez a partir da
reação de alguns setores ligados ao aparado repressivo do Estado. O
ofício do Deputado Flávio Bolsonaro, a reação da “bancada da bala”, a
reação de algumas associações de policiais… A presidenta do tribunal é filha de policial e isso também pesou na
decisão. Há certa pessoalidade na questão, além do componente
ideológico. Mas entidades e pessoas ligadas à justificação da truculência do Estado endossaram a atuação do tribunal. Que decisão o senhor imagina saia nesta segunda-feira? João Batista Damasceno — Não creio no recebimento da
representação. Agora, se acolhida, ela poderá ser ao final arquivada ou
posso sofrer uma sanção administrativa, de natureza disciplinar. Tenho
20 anos de magistratura e em minha ficha funcional não consta nenhuma
sanção. Ao contrário, tenho dois elogios. O fato de ter doado dinheiro para a ceia dos
sem-teto na Cinelândia, no Natal do ano passado, vai influenciar no
julgamento? João Batista Damasceno – Não sou vítima da atuação dos que estão em outro espectro ideológico no seio da magistratura e da sociedade. O que estamos vivenciando é um embate próprio dos interesses inconciliáveis. Mas, claro, que minha posição ideológica, notadamente, pela afirmação
do Estado de Direito neste momento de ascensão do Estado Policial e a
participação de uma entidade que pugna pela difusão da cultura jurídica
democrática, influencia o posicionamento daqueles que se alinham com
posições jurídico-político-ideológicas adversas. Como qualifica essa ação contra o senhor? João Batista Damasceno — A censura a obra de arte é
inconstitucional. Igualmente inconstitucional é a ameaça de processo
disciplinar, pois viola o direito à livre manifestação do pensamento. ****** Carta de repúdio enviada pelo desembargador Siro Darlan aos
colegas por ocasião da ação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
contra o juiz João Batista Damasceno Colegas Magistrados. Em nome de Deus muitas guerras “santas” fraticidas foram declaradas e
em nome da Justiça tenebrosas injustiças são praticadas. Assim como
Deus é a Luz do Mundo, a Justiça deve ser o farol de segurança do
respeito ás regras de convivência humana traçadas pela Constituição que
foi escrita para a sociedade como garantia do equilíbrio entre os
desiguais e o respeito ás diferenças. Precisamos estar atentos para os movimentos que estão se proliferando
de perseguição a determinados magistrados, colegas de primeiro grau, em
razão de seus posicionamentos judiciais, pessoais, filosóficos ou
doutrinários. A independência do juiz é de natureza jurídico-administrativa,
fazendo parte da relação do juiz com o Estado. Assim como as
demaisgarantias da magistratura, está inserida num amplo contexto, que
corresponde à independência do Poder Judiciário e à imparcialidade do
magistrado. “Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito
valerá, em um país e em um momento histórico determinado, o que valham
os juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo, nenhum cidadão
pode dormir tranquilo” (Eduardo Couture). A independência do juiz, primeiro, é uma garantia do próprio Estado
de Direito, pelo qual se atribuiu ao Poder Judiciário a atribuição
de dizer o direito, direito este que será fixado por normas
jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo, com inserção, ao longo dos
anos, de valores sociais e humanos, incorporados ao direito pela noção
de princípios jurídicos. A independência do juiz, para dizer o direito, é estabelecida pela
própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de
Direito será respeitado e usado como defesa contra todo o tipo
de usurpação. Neste sentido, a independência do juiz é, igualmente,
garante do regime democrático. Importante, ademais, destacar que a questão da independência dos
juízes tratou-se mesmo de uma conquista da cidadania, pois nem sempre
foi a independência um atributo do ato de julgar. Dalmo de Abreu Dallari, assim se pronuncia a respeito: “Essa ideia de independência da
magistratura não é muito antiga. Há quem pense que isso acompanhou
sempre a própria ideia de magistratura – eu ouvi uma vez alguma coisa
assim no Tribunal de Justiça de São Paulo – o que é um grande equívoco.
São fatos, fenômenos novos, situações novas, que estão chegando há pouco
e que provocam crise, provocam conflitos. Paralelamente a isso verifica-se, nesse
ambiente de mudanças o crescimento da ideia de direitos humanos. Há um
aspecto da história da história da magistratura que eu vou mencionar
quase que entre parênteses, é uma coisa que corre paralelamente à
história europeia, mas fica lá num plano isolado que é o aparecimento de
uma magistratura independente, de fato independente nos Estados Unidos. É oportuno lembrar a atitude política dos
Estados Unidos durante todo século XIX, ficando numa posição de
isolamento do resto do mundo, sem participar de guerras ou alianças.
Também o seu direito tinha outro fundamento, pois era basicamente o
direito costumeiro e por isso não serefletiu nos direitos de estilo e
tradição romanística, mas é muitointeressante esse aspecto da história
dos Estados Unidos.” Ora, não há dúvida que essa garantia vem sendo solapada através de
campanhas de desvalorização dos profissionais da justiça, através
da mídia comprometida e de políticos interessados na impunidade e
no enfraquecimento do judiciário. Essa campanha acaba gerando juízes
medrosos, covardes e acanhados, com medo de um necessário ativismo
judicial, onde através de decisões corajosas e independentes reflitam a
verdadeira independência do Poder Judiciário e não uma subserviência aos
mais poderosos midiática e economicamente. Mas quando essa pressão ocorre dentro de nossa Casa de Justiça,
estamos dando um tiro no pé e armando nossos adversários com argumentos
insuperáveis. Desse modo precisamos acompanhar de perto e com interesse
na proteção da magistratura como um todo. As ações, sobretudo as de
iniciativa da Corregedoria doTribunal de Justiça que vem tentando
amedrontar e calar juízes quedemonstram com mais efervescência essa
independência. Magistrados estão sendo chamados a prestar esclarecimentos por suas
decisões judiciais, manifestações acadêmicas e outras que não se
enquadram no modelo pré-determinado e isso é inaceitável e uma
verdadeira agressão que precisa cessar em respeito a toda magistratura
fluminense. Desmandos administrativos, comportamentos não éticos ou condutas
negligentes com nossos deveres constitucionais e funcionais, devem
sempre ser corrigidas, seja no âmbito do Controle Interno, seja através
do próprio Controle Social; mas a perseguição sub-reptícia, a ameaça de
procedimentos punitivos ou a própria instauração de processos tão
somente em razão de decisões proferidas no âmbito do processo judicial
ou em razão de opiniões acadêmicas, refogem inteiramente dos próprios
princípios republicanos que fundamentam a Constituição da República. A independência do juiz é condição basilar para a garantia dos
direitos fundamentais e não podemos deixar que esta ou
aquela administração se valha de seu mandato temporário e fugaz para
solapar através de um terrorismo administrativa ospróprios pilares do
Estado Democrático de Direito. Portanto, nobre Colega, a vigilância é permanente e cabe a nos esta vigilância. Siro Darlan
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