Na era “analógica”, eram os papos entre amigos, os parcos e
entrecortados conselhos dos pais e, principalmente, a prática - sempre
repleta de muitas tentativas e muitos erros. Na era digital, são os
filmes pornográficos. Numa sociedade cuja educação sexual é falha,
cercada de tabus, a internet de alta velocidade inundou computadores, tablets e smartphones
de adolescentes e jovens com uma quantidade sem precedentes de filmes
de conteúdo explícito, tornando as distorções, os estereótipos e a
performance espetacularizada dessas obras, muitas vezes, a referência
principal de quem está começando a vida sexual.
A objetificação da mulher, a supremacia do contato genital sobre as
trocas afetivas e o raro uso de camisinha são características dos filmes
pornô que se reproduzem na vida real, atestam especialistas.
A
publicitária e empresária inglesa Cindy Gallop, de 54 anos, foi das
primeiras “autoridades” no tema a observar o fenômeno global. Criadora
de um site (makelovenotporn.tv) de vídeos e textos com um contraponto
“mais humano” à robótica pornografia tradicional, ela diz ter notado um
crescente comportamento sexual caricato nos homens com quem sai, a
maioria na casa dos “vinte e poucos anos”.
- O que eu estava encontrando eram as ramificações da onipresença
do pornô hardcore na nossa cultura - lembra essa filha de pai britânico e
mãe chinesa, criada em Brunei e, hoje, moradora de Nova York.
Cindy
não é, nem de longe, uma puritana. No seu site, em palestras mundo
afora e no livro de 2011 “Make Love Not Porn: Technology's Hardcore
Impact on Human Behavior” (“Faça amor, não pornografia: O impacto do
pornô hardcore no comportamento humano”, em tradução livre),
ela usa linguagem e conceitos libertários. Mas critica a exposição de
crianças e adolescentes desde cedo ao material pornográfico da web:
-
Está se formando uma geração inteira de meninos que crescerá
acreditando que aquilo que veem nos vídeos é a forma como se deve fazer
sexo. Os programas de educação sexual são precários, e os pais continuam
tendo dificuldade de tratar desse assunto com os filhos. Isso não é
nada bom.
De acordo com levantamento da consultoria Nielsen, dois em cada três
consumidores de pornografia na internet são homens. Assim, não é raro
que as fantasias masculinas extrapolem o mundo digital e acabem na
rotina sexual dos casais. O programador carioca Rodrigo, de 27 anos,
conta ser um consumidor assíduo de pornô. E admite que isto influencia
as relações com a namorada.
- Com certeza em algum momento da vida
rola aquele instante em que você percebe que a pornografia está para o
sexo como (o filme) “Velozes e furiosos” está para dirigir - compara o
jovem, para quem o caráter espetacular e emocionante dos filmes pornô
pode tornar frustrantes as relações reais. - Vale mais uma boa
masturbação do que uma transa ruim.
As mulheres já estão se
adaptando aos desejos dos parceiros sob influência dos filmes. Com isso,
formam-se casais que só sentem prazer se seguirem o roteiro do mercado
pornô, explica a inglesa Cindy:
- No mundo real, uma das coisas
mais prazerosas é o contato de pele. É uma delícia transar com os braços
envolvendo o parceiro, com os corpos apertadinhos. Só que isso é
inadmissível no hardcore, pois estaria obstruindo o olhar da
câmera, que quer focar bem o famigerado ponto de entrada. Se tomarmos a
regra desses filmes, todos os homens gostam de dar tapas, todas as
mulheres gostam de sexo anal e de xingamentos, e basta uma mínima
estimulação do clitóris para que elas estejam prontinhas. Sem falar no
clichê de que elas têm orgasmos o tempo todo, e nas mais esdrúxulas
posições.
O estudo “Pornografia, desigualdade de gênero e agressão
sexual contra mulheres”, feito pela pesquisadora brasileira Lylla Cysne
Frota D'Abreu, da Universidade de Potsdam, na Alemanha, lançou um outro
olhar sobre a questão. Para o trabalho, publicado ano passado, Lylla
entrevistou estudantes universitários brasileiros do sexo masculino e
revelou que 99,7% deles já haviam acessado conteúdo pornô on-line, 54,3%
o faziam com frequência e, entre os mais assíduos, eram maiores os
casos de agressões sexuais contra mulheres. “O fenômeno inclui uma ampla
variedade de comportamentos, desde passar a mão e tirar peças de roupa,
passando por coerção sexual e até estupro”, ela define.
Mesmo no
sexo entre homens o pornô pode oferecer influência perigosa. O
assistente administrativo Davi, de 25 anos, mineiro de Juiz de Fora que
vive há três anos no Rio, afirma que o pouco uso da camisinha e as
relações com múltiplos parceiros simultaneamente têm frequentado seu
repertório sexual. Ele atribui diretamente o grave descuido ao hábito de
assistir a vídeos pornográficos “praticamente todos os dias”:
-
Não tem como negar que aquilo é excitante, difícil não querer viver uma
aventura parecida. Na hora chego a pensar no perigo (de não usar
camisinha), mas, se a excitação é muita, passo por cima.
Uma
pesquisa recente revelou que, no Reino Unido, um terço das crianças de
até 10 anos já havia acessado algum tipo de conteúdo pornográfico
on-line. Mais de 80% dos adolescentes de 14 a 16 anos o faziam
regularmente, dois terços deles por meio de smartphones. Ao
mesmo tempo, 70% dos entrevistados disseram nunca ter feito sexo, o que
torna a experiência na internet sua única referência sexual.
Segundo
Junia de Vilhena, psicanalista do Departamento de Psicologia da
PUC-Rio, a visão distorcida sobre o sexo tem raízes antigas e só foi
agravada pela disseminação do pornô on-line.
- Essa pressão sobre a
mulher, que tem que satisfazer o homem na cama, é fruto da educação
machista comum em vários países. A maior característica da pornografia é
suprimir a fase de sedução. Pornografia é a antítese do erotismo - diz
Junia. - A pressão pelo desempenho faz com que rapazes de menos de 19
anos consumam Viagra, com medo de falhar.
O casal swinger
Junior e Susy Leal, criador e responsável pelo site especializado em
trocas de casais sexocomcafe.com.br, tem um estilo de vida incomum, mas
nem por isso dá pouca importância ao consumo de pornografia pelos mais
novos.
- Somos contra dar acesso livre aos nossos filhos, de 18,
14 e 13 anos - diz Junior, de 43. - Muitos pais não falam sobre sexo com
seus filhos, mas, pela vivência que temos nesse setor, nosso papel é
fazê-lo de forma redobrada. A pornografia pode até ser útil como base
para experiências. Não acredito que cause danos irreversíveis. Mas é
preciso bom senso.
Para a sexóloga Laura Muller, autora do livro
“Educação sexual em 8 lições” e colunista do GLOBO, o problema é a
exposição cedo demais.
- Para crianças, esse tipo de material é
totalmente não recomendado. Já a partir da adolescência, entre 15 e 17
anos, é difícil barrar o acesso. Mas pais e escola podem estar atentos,
de modo a passar a noção de limite e o conceito de que existem mil
maneiras de viver o sexo, sendo que a melhor é a prática saudável e
afetiva. Mais tarde, na vida adulta, o jovem escolherá à vontade.
A
estudante Miyuki Tachibana, 26 anos, é atriz e alt-model (modelo
alternativa) do site www.xplastic.com.br. Bissexual, ela tenta eliminar
os preconceitos sobre o trabalho sensual:
- Já aproveitei (filmes
pornô) para aprender truques novos, como fazer um bom sexo oral. Tudo
bem consumir pornografia, mas sem deixar as relações pessoais de lado.
Sexo realmente bom é com carinho, vontade e respeito.
‘Ninguém me leva ao orgasmo’
X., 23 anos - A jovem escreveu anonimamente para o site makelovenotporn.tv, de Cindy Gallop
A
partir dos 13 anos, quando comecei a usar computador, virei uma ávida
consumidora de pornografia em vídeo. Lentamente subi na escala,
assistindo a perversões mais doentias, até chegar ao que poderia definir
como meu limite final. Nunca tive uma relação sexual funcional. Nem
creio que um dia terei. Ninguém me leva ao orgasmo. Só chego ao clímax
sozinha e me envergonho das minhas fantasias. Pré-adolescentes precisam
de educação sexual de verdade, para não virar capachos ou vítimas
inconscientes dos caprichos alheios.
O Globo
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